domingo, 13 de julho de 2014

Thiaguinho, vai brincar de bola

Era um menino franzino, o menorzinho de seu grupo. Tinha casa, mas vivia na rua: não importava a hora que eu saísse, Thiaguinho estava jogando bola ou soltando pipa. Às vezes, olhava para ele e tentava imaginar quantos anos tinha. Suas perninhas curtas e olhinhos grandes me convenciam de que Thiaguinho era um recém-menino.

Apesar de ser um humano pequeno, era grande entre seus amigos. Thiaguinho estava sempre em todas as brincadeiras e todos o conheciam.

Eu o conhecia.

Certa vez, encontrei Thiaguinho na prainha do Vidigal. Estava acompanhado de um punhado de crianças, como sempre. Naquele dia, vi o menininho ser motivo de graça para um grupo de adolescentes que sentava à sombra do Hotel Sheraton. Ele dançava às gargalhadas, fazendo movimentos que remetiam a coisas que só gente grande deveria fazer. E Thiaguinho não era gente grande. E por isso, era uma grande piada.

Eu era itinerante na rua. Entrava e saía de casa, nada que levasse mais de um ou dois minutos. Mas sempre via Thiaguinho, dizia-lhe oi. Era o único do grupo cujo nome eu sabia. Queria saber também onde estava sua mãe, se ele ia à escola, se estudava e comia direito. Mas eu apenas passava para lá e para cá, enquanto Thiaguinho brincava de infância.

Esperava ansiosa pelo dia em que Thiaguinho iria espichar como os garotos da escola, que entravam de férias baixinhos e voltavam um mês depois alguns centímetros mais altos do que eu. Mas Thiaguinho era pequeno como nenhum outro menino.

Certo dia, percebi que eu já não era a menina que protagonizou as velhas fotos da família. Teria o tempo passado? Procurei Thiaguinho para saber. E lá estava ele, miúdo, cercado por meninos esguios que exibiam os primeiros sinais da puberdade. Então, tive minha resposta: o tempo havia passado sim, mas Thiaguinho era imune a seus efeitos. Naquele dia, fiquei imaginando se Thiaguinho era mesmo humano. Deixei-me encantar pela ideia de que ele poderia ser uma criatura mágica, que gozasse do direito de ser criança para sempre. Torci para que o fosse de fato.

Mas Thiaguinho de mágico não tinha nada. Vivia na rua, pois o barraco que dividia com seus pais e irmãos era tão minúsculo que atrofiava seu crescimento e suas alegrias. E Thiaguinho não queria desencantar com a vida justo na melhor época dela. Ele tinha o direito de ser criança.

Parei de ver Thiaguinho brincando na rua. Crianças ainda jogam bola e soltam pipa ali, mas nenhuma é Thiaguinho. Penso que ele, mesmo franzino, não conseguiu segurar a infância para sempre. Ela escorreu por seus dedos, assim como escorreu pelos meus.

Penso em Thiaguinho vez ou outra e em como ele deve brincar de ser gente grande. Vai jogar bola, Thiaguinho, na extensa e irregular rua da vida.



quarta-feira, 4 de junho de 2014

Droga

Percebi que vivo de sonhos. Sem eles não tenho fome, fé ou boa vontade. Minhas bochechas perdem o tom rosado e meus olhos se enchem de neblina.

Parece que falta alguma coisa. Acho que não sou do tipo que sabe ficar à deriva no mundo e no tempo. Preciso de rumo. E preciso de um rumo que possa mastigar e saborear previamente.

Planejo minhas conquistas. Meu ceticismo não me deixa acreditar que a sorte e o acaso se esforçarão por mim. Por isso, corro incessantemente atrás de cada ambição.

E como cansa! Às vezes, tenho a impressão de que trituraram minhas aspirações e salpicaram o mundo com seus pedacinhos.

Minha vida funciona como aquelas promoções de jornais e revistas, que todo domingo publicam um selo para juntar e trocar por algo grande no final. Para mim, porém, todo dia é domingo. E o final é sempre o começo de outra coisa.

Existo para viver momentos felizes, mesmo que para isso gaste dias apenas sobrevivendo. Minha ansiedade é anestesia para a alma. Quando posso sonhar, nem sinto que o tempo passa esfolando minha pele.

Que passe esse tal de tempo! Se for para viver alegrias, quem se importa? No final, somos todos colecionadores dessas cicatrizes de guerra que chamamos ingenuamente de rugas, provas de que já vivemos e ganhamos muitas batalhas.

Demorei para entender o que as pessoas queriam dizer quando me aconselhavam a não ter medo do futuro. Quando percebi, já era passado.

Sonhar não é cura, mas é terapia. É substância que alivia os sintomas de uma cronofobia que me assombra desde que comecei a entender o mundo.

Sem sonhos, entro em abstinência.

(Amy Sol)

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Por tudo

Escrevia para os outros.

A caneta e o papel eram pedras que segurava firme entre os dedos, prontas para serem arremessadas ao mundo.

Precisava tirar tudo de dentro de si. Era um ser muito pequeno para suportar o fardo desses sentimentos que pesavam como loucuras em seus ombros.

Escrevia para aliviar.

Queria sentir-se vazia, tão vazia que as batidas de seu coração ecoassem no interior de seu corpo.

E leve. Mas não o bastante para deixar que a práxis a empurrasse para trás.

Escrevia para contaminar.

Gostava de invadir as pessoas com palavras. Queria que elas impregnassem suas roupas, apertassem-lhes a garganta.

Alimentava-se da acidez de seus pensamentos, que corroíam as utopias dos outros.

Escrevia para não falar.

Era mais fácil controlar as mãos que a boca. Sentia ânsia de botar para fora todos os causadores dessas náuseas mentais, mas ainda assim precisava zelar por seus segredos e vergonhas.

Seus mistérios, na verdade, os queria bem escondidos no fundo falso da gaveta onde guardava os valores que pautavam sua existência.

Escrevia para não calar.

Precisava dizer o inegável, manchar essa polidez fingida das pessoas. Quem sabe dessa forma elas percebessem que precisam se livrar das impurezas que carregam e propagam por aí.

Talvez assim, olhassem para si e constatassem que os outros são um pouquinho delas. E que todos somos muito do mundo.

Escrevia para os outros.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O lobo

- Eu sou má? - perguntava-se, num sussurro íntimo. As palavras ecoavam silenciosamente dentro de sua cabeça.

Lembrava-se de quando era criança e gargalhava das limitações de seus coleguinhas, e de quantas vezes transformou o constrangimento alheio em risadas.

- Por quê? – insistia.

Pensou na força que tinha que fazer para não desejar que as coisas dessem errado para certas pessoas. Força essa resultante do atrito entre o politicamente correto e a selvageria engaiolada nas masmorras de sua alma.

- Mas eu ajudo os outros. Tenho carinho por meus amigos e familiares. –tentava se explicar para si mesma.

Assustava-se com seus próprios argumentos. Seu caráter mais se aproximava de um primitivo instinto animal: prezava verdadeiramente apenas por suas crias, seu bando.

- Eu tenho amor ao próximo, sim! – bradava para dentro, como se em algum lugar no interior de seu corpo, alguém a pudesse ouvir.

Uma vergonha cortante atravessava seu peito: pensava em quantos sorrisos já teve que conter ao presenciar o fracasso de terceiros.

Sentia-se mentalmente perturbada com os traços psicopatas, bipolares e esquizofrênicos que iam se exteriorizando no decorrer de seu monólogo.

- Não é minha culpa. É que algumas pessoas fazem por merecer uns tropeços. – justificou e julgou.

Estava fraca, escassa de poréns e porquês. Sua maldade era fato. Não tinha jeito.

- Mas não é somente minha essa maldade. É de todos. Hipócritas aqueles que se dizem bons. – atacou os homens, por serem os lobos de sua própria espécie.

Era mais fácil assim: reduzir-se a uma partícula dessa massa heterogênea que é a humanidade. Não havia a pressão de ser o todo, o sujeito. Acreditar que o mal é intrínseco à raça humana dissolvia a culpa ardente que a consumia.

Sem se importar, abraçou suas frágeis desculpas e seu travesseiro.

- Que mal há em ser mau quando todos o são? Existe o bem afinal?

Era inútil procurar por bondade neste mundo tão cheio de realidades.

O cansaço a vencia. Imaginando se encontraria o bem dormindo em alguma calçada nas esquinas de seu subconsciente, adormeceu.



quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Gente e pano

Caminhavam pela enseada de Botafogo. Nas mãos, os restos de um farto jantar esfriavam dentro de uma quentinha de alumínio. Enquanto ele contemplava as luzes da Urca do outro lado da baía, algo no chão prendia a atenção dela.

Um lençol encardido cobria um corpo frágil e imóvel. Aquele homem esfriava na calçada, assim como as sobras esfriavam dentro do embrulho mal feito que carregava.

- Olá... - disse ela.

O bicho humano continuava inerte e calado.

- O que você está fazendo?! – perguntou ele, surpreso ao perceber que ela não o acompanhava na contemplação da estonteante vista que os cercava.

- Quero dar esta quentinha a esse homem.

- Deixe aí no chão, ao lado dele. Não vamos acordá-lo. Pode ser agressivo. – a advertiu.

- Ele não é um cachorro, tem mãos. E é a elas que quero entregar esta comida.

Ela voltou seus olhos para a massa cinzenta no chão.

- Ei, moço. - tentou mais uma vez.

Permanecia imóvel.

- Deixe isso logo aí! É perigoso ficarmos aqui parados. – ele insistia.

Por um breve momento, o medo que a acompanhava a cada passo que dava naquela cidade havia dado lugar a um carinho gratuito e solidário. Parecia que um balde de realidade havia sido derrubado em sua cabeça.

Sentiu-se entorpecida quando sua mente tentou colocá-la debaixo daqueles trapos pútridos, no chão duro de pedrinhas portuguesas, com a barriga vazia de comida, mas cheia de dores e lamentos. Era impossível, inverossímil.

Ela não vivia no melhor dos mundos, mas aquele homem pertencia a um pior, inóspito e cruel. Deu-se conta de suas abissais diferenças quando percebeu que seus maiores problemas se tornariam soluções se, de alguma maneira, pudessem ser transferidos para a vida daquele ser.

“O aluguel aumentou, o carro quebrou, a conta de luz está cara, não consigo terminar a faculdade...” - pensava, no mesmo ritmo apressado de seus passos, que distanciavam-na daquela figura turva, que agora se confundia com as sombras que enfeitavam a noite.

De longe, pôde ver a embalagem metálica da quentinha reluzir: mãos haviam surgido do meio daquela mistura de gente e pano despejada chão. “É só mais um homem”, ela sussurrou para si.

Aconchegada no banco traseiro do taxi, se perdeu na bela vista do Aterro do Flamengo e em seus problemas. “Que péssimo serviço o desse restaurante”, lamentou.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Quando eu via arco-íris

Não sei se o mundo era maior, mas o tempo passava devagar.
Eu costumava deitar no chão de cimento do quintal. Estava sempre morninho depois de passar algumas horas da tarde sob o Sol e exalava um cheiro quente de concreto, o mais nostálgico de minha vida.
Eu podia olhar pela janela quando chovia. Gostava do rugido dos trovões e dos clarões dos raios. Naquele tempo, sentir medo não era um problema: eu tinha o aconchego de um colo adulto e minha casa era uma fortaleza impenetrável, protegida pela inocência que me distanciava de qualquer desastre.
Eu contava meus anos nos dedos das mãos. Projetava no futuro que brilhava a minha frente os desejos e planos mais inconsequentes, com a mesma facilidade que enchia folhas de papel de rabiscos e formas abstratas.
Coloria meus sonhos com as 12 cores da caixa de lápis de cor recém-comprada para a volta às aulas naquela época. Tudo estava sempre bom, perfeito, bonito. Meus erros passavam discretamente, na pontinha dos pés, sem incomodar ninguém.
Eram tempos em que eu vivia as tardes do mundo, em que horas e minutos passavam suavemente por meu rosto, balançando alguns finos fios de me cabelo infantil.
Meu único problema era ser criança. Minha única responsabilidade, crescer.



quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Como perder uma chance de ser feliz

Acordei com meu corpo ainda achando que era noite. O despertador silenciava e alguns fracos raios de luz haviam encontrado o caminho para meu quarto pelas frestas da cortina. Mais uma vez, a preocupação antecipou a hora de levantar.
Encarei o teto por alguns minutos. Derramadas ali, minhas angústias manchavam aquela superfície branca e lisa de gesso. Elas escorriam... e pingavam em mim.
Rolei para o lado. Bem que esses problemas podiam grudar nos lençóis e soltar de vez de meu corpo cansado.
Mas não. Eles levantaram comigo e acompanharam meu cambaleado sonolento até a cozinha.
O cheiro do café perfumava aquela manhã e a calma com que eu preparava o desjejum me fazia acreditar que estava vivendo as primeiras horas de um descompromissado sábado. Era bom fingir que acreditava naquilo.
O dia se exibia por trás da janela. Flertei por alguns segundos com aquele exuberante céu. Indeciso, ele ainda não havia resolvido que cor preencheria sua imensidão. Meu coração apertou.
 Senti vontade de lamentar.
A poucas horas dali, uma cadeira me esperava no escritório. Todo dia, a necessidade me algemava àquele lugar.
Senti meus problemas me cutucarem no ombro. Havia esquecido por valiosos instantes que eles estavam ali.
“Que inconveniência”, pensei, a testa franzida e o peito cheio de reclamações.
Fechei a cara e o dia. Enquanto me preparava para sair, coloquei o guarda-chuva na bolsa.